J. Bras. Nefrol. 2004;26(3 suppl. 1):4-5.

Diagnóstico de Doença Renal Crônica: Avaliação da Função Renal

Roberto Pecoits-Filho

INTRODUÇAO

A estimativa da filtraçao glomerular (FG) representa uma ótima maneira de mensurar a funçao renal, e uma FG reduzida é considerada um bom índice da funçao renal, e deve ser usada no estadiamento da doença renal crônica (DRC). Uma queda na FG precede o aparecimento de sintomas de falência renal em todas as formas de doença renal progressiva. Portanto, ao se monitorizar mudanças na FG estima-se o ritmo de perda da funçao renal. A aplicaçao clínica da FG permite ainda predizer riscos de complicaçoes da DRC e também proporcionar o ajuste adequado de doses de drogas nestes pacientes prevenindo a toxicidade.

A FG nao pode ser medida de forma direta, porém se uma substância tem sua concentraçao estável no plasma, é livremente filtrada no glomérulo renal, nao é secretada, reabsorvida, metabolizada ou sintetizada pelo rim, a sua concentraçao filtrada é igual a sua quantidade excretada na urina. Estimativas da FG através da depuraçao de creatinina com urina de 24 horas e a creatinina sérica foram as formas mais usadas nos últimos anos para estimar a FG, porém também apresentam limitaçoes práticas. Mais recentemente, equaçoes usadas para estimar a FG a partir da creatinina sérica têm sido analisadas e testadas em grandes estudos que serao neste texto revisados.

“A dosagem da creatinina sérica isolada nao é uma boa estimativa da FG”

Grau de recomendaçao B, Nível de evidência III

Apesar de que a creatinina sérica representa uma estimativa grosseira da FG, seu ritmo de excreçao nao é constante entre indivíduos e através do tempo, e sua mensuraçao varia de acordo com o laboratório onde a creatinina é dosada. Estes fatos mostram as razoes para sérias limitaçoes no uso prático como estimativa da FG. Além disso, por ser (além de filtrada) secretada no sistema tubular a creatinina excretada na urina é uma combinaçao da sua filtraçao e secreçao, podendo ser pouco precisa especialmente em pacientes com disfunçao renal. Estima-se que aproximadamente 50% dos indivíduos com baixa FG apresentam creatinina sérica ainda dentro do limite da normalidade. Além disso, a relaçao entre creatinina sérica e a FG é afetada pelas diferenças em sua geraçao, levando a variaçoes da sua concentraçao sérica de acordo com a idade, dieta, sexo e raça.

Em resumo o uso da creatinina sérica é limitado na avaliaçao da FG, pois é afetado por fatores independentes da FG como idade, sexo, raça, superfície corporal, dieta, drogas e diferenças em métodos laboratoriais. Por isso, recomendamos que a creatinina sérica nao deve ser utilizada para avaliar o grau de disfunçao renal em IRC.

“Em geral, a medida da FG usando urina de 24 horas nao é mais confiável que as calculadas por equaçoes”.

Grau de recomendaçao B, Nível de evidência III

Apesar de que a coleçao de urina de 24 horas seja útil na mensuraçao da excreçao de creatinina, muitas vezes este método nao se mostra superior (e às vezes até inferior) às estimativas da FG provenientes de equaçoes [1]. Este fato pode ser justificado por erros de coleta e variaçoes diárias na excreçao de creatinina. Em alguns casos como indivíduos em dietas vegetarianas, tomando suplementos de creatina, amputados, extremo de idade e tamanho corporal e paraplegia, as equaçoes têm seu uso limitado e a estimativa da FG pela depuraçao de creatinina com urina de 24 horas é recomendada.

“A creatinina sérica ajustada através de equaçoes deve ser utilizada para a avaliaçao da funçao renal”

Grau de recomendaçao B, Nível de evidência III

O uso de equaçoes para estimar a FG tem como vantagem fornecer um ajuste para variaçoes substanciais em sexo, idade, superfície corporal e raça que interferem na produçao de creatinina [2]. Várias equaçoes foram desenvolvidas para predizer a FG em pacientes adultos e crianças. A mais comumente utilizada ainda é a fórmula de Cockcroft-Gault (Tabela 1), desenvolvida para o cálculo da depuraçao da creatinina, mas freqüentemente utilizada para estimar a FG [3]. Mais recentemente, uma fórmula para a estimativa da FG foi desenvolvida a partir do estudo (MDRD)[4]. Em crianças, duas fórmulas foram sistematicamente avaliadas: a equaçao de Schwartz [5] e a de Counahan-Barratt [6].

“Entre as equaçoes disponíveis, a fórmula de Cockcroft-Gault deve ser aplicada preferencialmente em nosso meio”.

Grau de recomendaçao D, Nível de evidência V

Uma equaçao amplamente usada e validada é a de Cockcroft-Gault. A principal limitaçao da equaçao é a ausência de padronizaçao para área de superfície corporal. Calculadores online sao encontrados na internet (www.sbn.org.br) e representam uma ferramenta útil na prática clínica.

A fórmula derivada do MDRD é a recomendada pelo DOQI da National Kidney Foundation. A equaçao permite o ajuste de acordo com a área de superfície corporal e sua versao simplificada (Tabela 1) necessita apenas de dados relacionados a idade, sexo e raça, além da creatinina sérica. Calculadores estao também disponíveis disponíveis na internet (www.sbn.org.br). No Brasil, dada a intensa miscigenaçao racial, a definiçao da raça (necessária para a aplicaçao desta fórmula) pode ser um fator limitante na sua aplicaçao. Apesar de que alguns estudos demonstram uma leve vantagem na aplicaçao da fórmula do MDRD em relaçao à fórmula de Cockcroft- Gault [4], esta análise se baseia em uma populaçao diferente da brasileira e, portanto sua validade em nosso meio ainda deve ser investigada de forma apropriada. Portanto, recomenda-se que em nosso meio a fórmula de Cockcroft- Gault seja aplicada como primeira opçao na avaliaçao da FG.

“Em pediatria, as equaçoes de Schwartz e a de Counahan-Barratt devem ser utilizadas preferencialmente”.

Grau de recomendaçao B, Nível de evidência III

Entre crianças, a equaçao de Schwartz e a de Counahan-Barratt utilizam a proporcionalidade entre a FG e a altura/creatinina sérica. Ambas usam a altura com estimativa de massa muscular e se tornam relativamente imprecisas à medida que a FG cai. Apesar desta limitaçao, qualquer uma das fórmulas é conveniente e prática e recomenda-se o seu uso na prática clínica.

“Em idosos, o diagnóstico de DRC deve ser estabelecido com base na presença de outro marcador de doença renal além da FG”

Grau de recomendaçao C, Nível de evidência IV

Em pacientes idosos, a FG pode diminuir como parte do processo de envelhecimento do organismo, e é difícil diferenciar diminuiçao da FG relacionada com a idade com a relacionada com DRC no idoso. Portanto para fins de estratificaçao e intervençoes, o diagnóstico de DRC nao deve ser feito exclusivamente a partir da estimativa da FG, mas também na presença de outros marcadores de doença renal, como alteraçoes do sedimento urinário.

REFERENCIAS

1. Walser M: Assessing renal function from creatinine measurements in adults with chronic renal failure. Am J Kidney Dis 32:23-31,1998

2. Perrone RD, Madias NE, Levey AS: Serum creatinine as an index of renal function: new insights into old concepts. Clin Chem 38:1933-1953,1992

3. Gault MH, Longerich LL, Harnett JD, Wesolowski C: Predicting glomerular function from adjusted serum creatinine. Nephron 62:249-256,1992

4. Levey AS, Bosch JP, Lewis JB, Greene T, Rogers N, Roth D: A more accurate method to estimate glomerular filtration rate from serum creatinine: a new prediction equation. Modification of Diet in Renal Disease Study Group. Ann Intern Med 130:461-470,1999

5. Schwartz GJ, Feld LG, Langford DJ: A simple estimate of glomerular filtration rate in full-term infants during the first year of life. J Pediatr 104:849-854,1984

6. Counahan R, Chantler C, Ghazali S, Kirkwood B, Rose F, Barratt TM: Estimation of glomerular filtration rate from plasma creatinine concentration in children. Arch Dis Child 51:875-878,1976

Diagnóstico de Doença Renal Crônica: Avaliação da Função Renal

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